Rodrigo Wanderley
Feche os olhos… Caatinga, cerrado, quilombo, favela.
Quais imagens vieram de pronto a sua mente?
Por onde essas imagens/discursos chegaram aos seus olhos?
Elas dão conta de retratar todas as facetas destes territórios e seus moradores?
Já se passaram onze anos desde que Chimamanda Ngozi nos alertou sobre “O Perigo da História Única” durante uma das edições do TED Talks. De lá pra cá, apenas um dos vídeos da palestra, disponível no YouTube, já somam mais de 7 milhões de visualizações e, em 2019, se desdobrou em um livro de mesmo nome.
Nesta fala, Chimamanda conta que quando criança convivia com Fide, um menino que trabalhava na casa de sua família. Quando teimava em não comer tudo o que havia colocado em seu prato, na lata, ouvia um “se assunte” de seus pais: “Termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não tem nada?”. Sentir pena e engolir em seco sua comida era o que lhe cabia. A família do jovem, neste discurso reiterado, não passava de coitados.
Um dia, Chimamanda e sua família foram visitar Fide. A jovem ficou surpresa ao ver outras tantas facetas daquela família e se admirou ao ver o cesto de padrão complexo confeccionado com ráfia seca feito pelo irmão de Fide. “Eu fiquei atônita com aquele trabalho. Não imaginei que poderiam realmente criar nada… A pobreza era a única história que sabia sobre aquela família.”
Esses dias, ‘emendei’ dois dedos de prosa com Dona Ieda Marques e conversamos um tanto sobre sua saga entre Boninal (Ba), passando por Barreiras (Ba), aportando em São Paulo (SP) até seu retorno a Salvador e, finalmente, de volta a Boninal.
Foto: Rodrigo Wanderley. Iêda projetando exposição de monóculos. Boninal, 2016.
Contava que ao chegar na metrópole paulista, em 1969, se deparou com uma cidade muito distinta daquela que lhe chegava em imagens e relatos. “Pela primeira vez na vida vi um esgoto e o rio, que cortava a cidade, era o maior deles: não dava pra banhar.”
Do mesmo modo, nas revistas que circulavam por lá, viu um Nordeste estranho a seus olhos. Cenários restritos a seca, fome e miséria; imagens que iam de encontro a sua vivência, seu imaginário e a tudo aquilo que trazia vivo em suas lembranças. “Foi lá que descobri que eu era uma nordestina, que todo nordestino era chamado de baiano e, qualquer coisa feita errada, uma baianada. Para me defender, dizia que era parente de Maria Bonita, andava com um punhal de cangaceira na capanga e falava pra todo mundo: se caçoar, furo mesmo!” E o povo acreditava, contou-me aos risos.
Depois de alguns anos na capital paulistana e cursar três semestres de pedagogia na USP, em 1975, Iêda volta à Bahia. Primeiramente a Salvador, onde integrou uma das primeiras ocupações do Movimento Sem Teto da cidade, no bairro da Ribeira. Período de muita luta em meio a ditadura militar, as foi também o seu começo nas veredas da fotografia, quando entrou no curso do Senac e começou a trabalhar como retratista e a registrar seu entorno nas pontas dos filmes que sobravam dos registros de casamentos, batizados e retratos 3×4. Até que, em 91, retorna a Boninal, sua terra natal.
Iêda Marques. A mesa da festa do casamento na Cutia, Boninal, 1997
“As imagem da fome no Nordeste me incomodavam muito! Comecei, então, a registrar as cozinhas pra mostrar nossa estética, gosto, beleza e abundância. As cozinhas eram o centro real e verdadeiro da casa, local de receber as visitas e prosear a vontade. Até que chega a televisão e a sala passa tomar esse espaço.”, afirma Iêda.
Iêda Marques. Cozinha rural, Areião Branco, Boninal, 1988.
Iêda Marques. Giro do Reis, Ibiquera, 2009.
Não por coincidência, mas talvez por causalidade direta, as comunidades periféricas dos grandes centros receberam o nome de Favela: alusão à cidadela de Canudos que fora construída próximo ao Morro da Favela, conforme conta Euclides da Cunha em Os sertões, visto que o nome do morro era devido à uma planta comum por ali, as favelas, “anônimas ainda na ciência – ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus.”
Iêda Marques. A faveleira no Sertão do São Francisco, 2016
Canudos era constituída, em sua maioria, por famílias que buscavam restituir suas liberdades e sua autogestão, como alternativa ao trabalho semiescravo ao qual foram submetidas nos latifúndios coronelistas. Tal qual Canudos, as favelas se tornaram espaços de resistência no seio das cidades grandes.
Com o advento das redes sociais e iniciativas de grupos organizados, outras histórias sobre as favelas estão galgando significativo espaço nesse campo de batalha discursivo. É o caso do projeto @favelagrafia, composto por nove fotógrafes de nove favelas do Rio de Janeiro, que vem desde 2016, contando outras histórias sobre as comunidades cariocas.
Josiane Santana. Retrato feito por seu filho.
Uma das integrantes do coletivo, Josiane Santana, jornalista pela FACHA e fotógrafa documental, vive no Complexo do Alemão e tem o olhar voltado para o seu lugar. “ O projeto tem como foco revelar o cotidiano da favela, um olhar do morador, e não do visitante que explora o local. A ideia é trazer uma nova perspectiva de quem tem pertencimento e vive aquele cotidiano. Começamos então a retratar isso tudo e o projeto deu muito certo.”, afirma Josiane. Tanto deu que, em 2017, o projeto foi premiado em Cannes e já realizou diversas exposições sendo duas delas no MAM-RJ (2016 e 2019).
“Hoje a nossa página no Instagram tem mais de 50 mil seguidores que estão se dando a oportunidade de ver a favela de um modo diferente, abrindo seu o olhar para perceber que isso aqui é muito mais que tiroteio e corpos femininos objetificados.”, conclui.
A contação de ‘causos’ é a primeira televisão da humanidade, a única diferença é que em vez de entrar pelos olhos, as imagens entram é pelos ouvidos e se formam no juízo do sujeito. As ferramentas apenas se ampliaram e, hoje, as histórias se multiplicam em superfícies luminosas, em forma de textos, fotografias, vídeos e podcasts.
“O problema com estereótipos não é que eles sejam falsos, mas sim que eles são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história”, Chimamanda Ngozi.
Apois, apure bem os sentidos… Entre os sertões e as favelas, quantas histórias estão sendo contadas neste exato momento?
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Sobre o autor: Alumiado no recôncavo baiano (SAJ), Rodrigo Wanderley cursou Jornalismo na UFBA e fotografia no Labfoto/Facom. Fotógrafo, agitador cultural e arte-educador, é idealizador do Varal das Artes, da Oficina de Caixa Mágica e foi co-produtor do Olhos da Rua. Atualmente vive no cerrado baiano, volta seu olhar para o interior e integra o grupo de pesquisa Imagem Articulada (Facom).