Festivais fora do eixo
Encontros e festivais trazem temáticas e trabalhos insurgentes
Por Rodrigo Wanderley @digowanderley
Se por um lado o isolamento social dificultou a realização de muitos dos encontros de fotografia que costumam ocorrer no Brasil entre os meses de Agosto e Setembro, a rápida difusão de aplicativos de encontros virtuais bem como de redes sociais de transmissão ao vivo possibilitaram a minha pessoa, e tantas outras, acompanhar alguns desses festivais sem sair do sofá, ou no meu caso, da própria rede.
Diante do contexto político atual de ataque aos direitos fundamentais das “maiorias” do território brasileiro, é interessante salientar a importância de festivais e encontros de fotografia que se apresentam como espaços de discussão e difusão de pontos de vista insurgentes. No recorte curatorial de alguns dos encontros deste ano, chama atenção a quantidade de trabalhos que questionam o status quo e abordam questões urgentes, de interesse público, como os “desastres” ambientais, o racismo estrutural, o assédio a territórios de populações tradicionais etc.
Em Olinda, o Pequeno Encontro da Fotografia, chega esse ano a sua sexta edição e trouxe o fotógrafo maranhense, Joelington Rios, para falar de seu potente trabalho denominado “ O que sustenta o Rio”.
Quilombola de Jamary dos Pretos -Turiaçu (Ma), na adolescência se desloca para o Rio de Janeiro (RJ) carregando consigo o imaginário da Cidade Maravilhosa, construído nas novelas televisivas que acompanhou durante toda vida. Ao entrar em contato com as contradições, preconceitos e as limitações impostas ao seu corpo negro – muito adverso do que via na Malhação da Rede Globo – foi desenvolvendo um novo olhar crítico que acabou transbordando em seu trabalho, retratando aqueles aos quais define como Os sustentadores.
Hoje morador da favela da Muzema, conta que começou a notar em suas viagens de ônibus como a dinâmica da cidade do Rio de Janeiro se dava, ao ver mulheres pretas cansadas que acordam de madrugada e se deslocam horas para “servir uma madame incapaz de fazer sequer o próprio café. […] É quando tenho certeza que essa cidade maravilhosa só existe porque essas pessoas estão aqui; assustador pensar que essas mesmas não usufruem nada[…] Uma cidade que exclui o meu corpo.”
Atualmente, continua morando no Rio de Janeiro e é fundador e curador do projeto @fotografosnegros no Instagram e, também, integrante do coletivo de arte Negros Fotógrafos. Veja fala completa aqui.
O que sustenta o Rio, de Joelington Rios
Também no Pequeno Encontro, outra fala instigante foi a da narradora visual Cristina de Middel que se diz no meio do caminho entre o fotojornalismo e a arte contemporânea, mesclando a ficção e a realidade, o que segundo ela “foi como uma vingança das frustrações que teve no jornal, já que se julgava documental demais para estar nas artes e artística demais para o fotojornalismo.”
Trabalho que melhor ilustra esta condição intermediária da artista é o premiado Projeto Afronautas, que se tornou um dos seus projetos mais conhecidos. Trata-se da documentação ficcional do programa espacial da Zâmbia que, por falta de recursos, não teria saído do papel.
Afronautas, de Cristina de Middel
Durante sua fala ao vivo, lancei no chat: “qual seria a sua opinião sobre a obra de Sebastião Salgado?” – a qual não se esquivou: “É uma pergunta problemática essa hein…(risos) pois o Sebastião foi muito importante para mostrar ao mundo os dramas que vivia sem saber. Mas com a linguagem e as ferramentas que temos hoje, acho que teria problemas para realizá-los…[..] Eu gostava, mas agora já não gosto… reafirma estereótipos!”
Assista a fala completa de Cristina de Middel, mediada por Eduardo Queiroga, aqui:
No Festival de Fotojornalismo de Brasília (BSB), transmitido entre os dias 16 e 19 de agosto, a mesa “Fotoativismo: fotografia pelo bem-viver”, mediada por Daniela Moura, reuniu as fotógrafas Isis Medeiros (MG), Janine Morais (DF), Andressa Zumpano (MA/DF) e a baiana Amanda Oliveira. Elas trouxeram trabalhos que falam da relação de povos com seus territórios em processos de resistência. São narrativas visuais impactantes, unindo denúncia a um olhar sensível e dialógico. Uma abordagem que se aproxima da escola de João Roberto Ripper (e sua fotografia do bem querer) que vem ganhando espaço nas narrativas visuais, deslocando os fotografados do papel de objeto para o de coopartícipe da narrativa.
Veja a palestra aqui.
Foto: Janine Morais
E por falar em Ripper, no mesmo festival, ele dividiu uma mesa com com o fotógrafo Edgard Kanaikõ. Um belo encontro mediado por Rogério Assis, que promoveu o aprofundamento no trabalho de Edgar,apresentando seu olhar interior, pertencido e sensível de quem registra seu próprio povo e ajuda a quebrar narrativas estereotipadas por olhares estrangeiros.
“Nós enquanto povo indígena, geraizeiros e quilombolas, usando desta ferramenta audiovisual como nosso arco e flecha. […] Para dizer aquilo que somos, quase como uma antropologia reversa; falando sobre nós e sobre o não indigena com o nosso olhar”. Como diz Ailton Krenak, “temos que lutar pela demarcação de telas!”.
Assista ao completa aqui.
Foto: Edgard Kanaikõ
Outro festival que pude acompanhar foi o QXAS – Festival de Fotografia do Sertão Central, que acontece desde 2018 nas cidades de Quixeramobim e Quixadá (Ceará – Brasil), e teve sua edição online entre os dias 11 e 14 de agosto, e pode ter parte presencial ainda este ano.
Em uma das palestras, a multi-artista Rosana Paulino, doutora em artes visuais pela ECA/USP, artista com foco principal na posição da mulher negra na sociedade brasileira, falou sobre processos criativos e sobre seu provocante Assentamento, um trabalho que questiona o cientificismo eurocêntrico eugenistas ao restabelecer a humanidade de uma mulher preta encontrada em livros de história natural. Rosana é uma escola viva… acompanhe sua fala no festival e conheça um pouco mais da sua extensa obra aqui.
Assentamento, de Rosana Paulino
Muito interessante observar esses deslocamentos e infinitas facetas da fotografia nos meios e nas artes contemporâneas. Do mesmo modo que os trabalhos tratam de questões individuais e auto-referenciadas, também tocam no coletivo e levantam questões e vozes que precisam ser propagadas. Escritas luminosas que pautam questões fundamentais para a superação de estereótipos e abrem fissuras nos discursos dominantes e eurocêntricos.
É fundamental que busquemos outras referências e outras histórias da fotografia para a construção de uma linguagem mais inclusiva e decolonizada. O que conhecemos da produção imagética dos países africanos, asiáticos e latino americanos? E em termos de Brasil, quanta atenção ainda damos para a produção do Sul e Sudeste e quanto negligenciamos esses pulsantes festivais e trabalhos nordestinos, nortistas e centro-oestinos? Fica a provocação!