Tanto faz: fraldas descartáveis, comida, embalagens, eletrodomésticos, roupas de marca, pneus, discos, remédios: não serve? Livre-se dele! Livre-se do indesejável. E ao nos deixar livres, nossos rejeitos são classificados e quase todos enquadrados na categoria lixo; desse ponto em diante, já não nos dizem respeito.
A palavra lixo apresenta um caráter pejorativo para aquilo que consideramos ser sujo, inútil, velho ou que não tem mais valor. É associado à rejeição, ao que deve ficar escondido e afastado de nossas casas e, principalmente, não pode ficar em lugares visíveis em nossa sociedade.
O lixo atrai todos os tipos de germes e bactérias, tem aspecto e aroma extremamente desagradáveis. Por tudo isso, é levado na sua totalidade para um único lugar, bem longe, onde possa, livremente, sujar, cheirar mal e atrair doenças.
A velha expressão “varrer para debaixo do tapete” mostra como a humanidade se comporta com seu lixo: se não pode ser visto, não existe. Por isso ele precisa ser rapidamente descartado. Basta colocar num saco plástico e levar até o corredor. Ou à calçada, de onde a cidade se encarregará de escondê-lo. Feito isto, limpos e isentos de culpa, continua-se vivendo, consumindo e produzindo… lixo.
Pouco importa que cachorros e humanos revirem sacolas à procura de sobras, desde que não exponham os nossos escondidos. Também pouco importa o lixão onde os urubus, porcos e seres humanos disputam restos. Melhor é que os caminhões de lixo o recolham de madrugada, quando não deverão ser vistos.
Rejeito desprezível, sem valor algum para quem os concebeu, o lixo tem um valor de grandeza para quem nele procura seu valor. E quem procura o valor no desprezado lixo sente-se, certamente, tão desprezado quanto ele. Para os urubus é abrigo dos mais aprazíveis. Para os badameiros, fonte de renda e sustento familiar.
Aqui e ali, a literatura e as artes abordam a questão, muitas vezes confundindo higiene, miséria e degradação humana com a produção industrial de detritos, com o desperdício e com os dejetos de nossa existência.
Luis Fernando Veríssimo aborda a questão do lixo de uma forma extremamente original: “Lixo é domínio público. Através dele, o particular se torna público, o que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social”.
Veríssimo percebe que, além de valores, o lixo agrega também histórias. Um lixo hospitalar concentra restos de sangue de um acidente fatal. Numa clínica clandestina pode-se encontrar um feto apodrecendo. Um lixo escolar pode reunir projetos inconclusos, trabalhos envelhecidos, textos impróprios. O lixo de peixaria se torna ninho de gatos, assim como o de açougue um ninho de cães. O lixo tem a história de quem o produziu e os valores de quem nele encontra abrigo para satisfação de necessidades. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros.
Tirar do rejeito humano a singularidade existencial e a possibilidade de realização da afetividade humana é a magia escondida nas entrelinhas da crônica de Veríssimo, onde enxergamos como é possível conhecer a singularidade de uma pessoa através do lixo que ela produz.
Bárbara Affonso
Mariana Pugliesi
2005.2